Publicado em 1982, Memorial do Convento, de José Saramago (1923), constitui-se como um dos melhores romances históricos portugueses do século XX.
Desenvolvendo-se classicamente por via de personagens antitéticas (D. João V / Baltazar Sete-Sóis; rainha D. Maria Ana / Blimunda Sete-Luas; frei António de S. José / Bartolomeu de Gusmão; nobreza e clero / povo de Mafra),
Memorial do Convento ganha no entanto a sua especificidade estética através da assunção de uma especial consciência da história da Portugal como suporte da narração; do estatuto ambíguo do narrador, simultaneamente individual e colectivo, circunstancial e intemporal; do estilo original de José Saramago, subvertor da sinalética gramatical e do tradicional lugar do diálogo no seio do texto; da galeria de personagens trágicas e maravilhosas, aproximando o romance português do “realismo mágico” latino-americano, e do conjunto de símbolos que envolvem o texto, prestando-lhe uma força mítica.
Como romance histórico, Memorial do Convento desconstrói a habitual narração da História de Portugal fundada na evolução e transformação das instituições políticas, prestando ao colectivo popular e a personagens humildes (como Baltazar e Blimunda) o papel épico tradicionalmente atribuído ao herói nacional. Do mesmo modo, o estatuto do narrador desdobra-se pelas variadas técnicas e pelos vários sujeitos narrativos estandartizados, a todos estilhaçando, ultrapassando-os e estabelecendo na prática textual um novo sujeito narrativo, à uma histórico e majestático, auto e hetero-diegético, distanciado e participante, pessoal e colectivo, omnisciente e íntimo, ora vocalizado na terceira pessoal do singular, ora na primeira do plural, sujeito que António José Saraiva, à falta de outro termo, identificou com a vox populi ou a vox dei.
Neste sentido, enquanto majestático e omnisciente, o narrador domina o tempo histórico, conhecendo o futuro e revelando proplepticamente as grandes linhas por que a História se desenvolve e o final global a que estas conduzem. Predomina, assim, em Memorial do Convento, o domínio narrativo do tempo, um tempo uno, íntegro, permitindo que o passado, o presente e o futuro sejam perspectivados segundo uma só dimensão textual, deslocando-se a história entre o passado e o futuro como se sempre habitasse o presente. No entanto, escapa a esta omnisciência narrativa a contingência dos destinos singulares e, principalmente, o resultado do entrecruzamento infinito dos actos particulares no seio da história geral. Deste modo, Memorial do Convento, texto uno mas plural, tanto ganha um sentido profético quanto sentencial, tanto é uma história de amor quanto um relato fabuloso, tanto é uma narrativa histórica de feição épica popular quanto um romance confessional, intimista, tanto é uma história iluminista, desmascaradora de crenças supersticiosas, quanto um texto moralista sobre a condição popular.
Na descrição e na narração, José Saramago usa um duplo aspecto estilístico: um leve tom jocoso-parodístico, que satiriza e ridiculariza o modo tradicional de se estudar História, é atravessado por uma história trágico-maravilhosa. Saramago escreve brincando com as palavras e, brincando, narra acontecimentos sérios. Por isso, o lado jocoso de Memorial do Convento não significa gratuitidade; significa, antes, uma apresentação patética (pathos), emocionada, de uma realidade histórica dramática. O pathos lírico da narração, que inspira e encanta, une-se assim à piedade, à comiseração que o leitor sente pelo destino das personagens que são implacavelmente (Baltazar, Blimunda Bartolomeu de Gusmão, Álvaro Diogo, Francisco Marques) arrastadas para um fim trágico. O lado jocoso-parodístico por que Saramago satiriza as personagens da aristocracia torna o romance um quase anedotário, mas um anedotário exemplar, desconstruindo rituais sociais que, na sua nudez narrativa, se evidenciam como ridículos, antes de mais a promessa sobre a qual o convento se levanta, e, depois, a megalomania de D. João V. Neste sentido, devido ao elemento moralista ou exemplar presente em Memorial do Convento, o tom jocoso do estilo torna-se sério, o patético evidencia-se como dramático e o cómico, se comparado com os costumes e a força popular, transfigura-se em épico. Eis o estilo de Memorial do Convento: um cruzamento estilístico entre o jocoso-sério, o patético-dramático e o cómico-épico.
Como romance histórico, Memorial do Convento realiza, igualmente, a suprema harmonia entre um fundo histórico factual e circunstanciado e um nível ficcional, que impera e determina o primeiro, gerando uma síntese unitiva superior, seja através da instância narrativa, seja através da caracterização fabulosa das personagens, seja, ainda, através do maravilhoso da história narrada. Com efeito, as três personagens principais (Baltazar, Blimunda e Bartolomeu de Gusmão) desenham um quadro harmónico fundado no maravilhoso - Blimunda é mais do que uma simples mulher do povo, possui dons extraordinários herdados da mãe; Baltazar, maneta, aparentemente menos do que um homem normal, torna-se mais do que humano ao construir a passarola e ao nela voar, vendo pela primeira vez o mundo “de cima”, do céu, como se fosse Deus, e Bartolomeu de Gusmão evidencia-se como um homem de sonhos visionários, proféticos, que constrói o futuro em forma de estradas no céu e passarolas nelas voando.
Porém, são as características sobre-humanas das três personagens que, falhando a normalidade social, as conduzirão à tragédia - Baltazar morrerá queimado pela Inquisição, Bartolomeu de Gusmão morrerá louco em Toledo e Blimunda arrastar-se-á pelos caminhos de Portugal, solitária, guardando o seu segredo visionário.
Memorial do Convento é igualmente habitado por símbolos-força, como o algarismo “sete”, o par “Lua/Sol”, o símbolo da ascensão da “montanha” (a serra de Monchique), o voo da passarola, que, narrativamente, funcionam como operadores míticos do texto, elevando-o a intriga diegética ao estatuto de uma história maravilhosa, reproduzindo potencialmente, no inconsciente do leitor, a força atractiva dos mitos permanentes da humanidade: o desafio do desconhecido, a ascensão ao Sol, o poder mágico da Lua, a imitação dos anjos voando sobre o mundo, o roubo prometaico dos poderes divinos. Porém, subvertendo a condição clássica, o quadro épico desenhado não intenta atingir um estatuto de poder ou de conhecimento semelhante ao dos deuses ou de Deus, mas, apenas, fundar o homem na sua humanidade, libertar o homem de todas as condições servis que o amarram, evidenciando-o na sua mais profunda igualdade: permitir que todos os homens sejam reis e todas as mulheres rainhas.
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